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A pulsão por tratar

Por Dr. Tarcyo Bonfim
 
Em um texto escrito recentemente neste site, fiz a seguinte pergunta: por que oferecemos tantos tratamentos na atenção domiciliar para os quais não há evidências que os fundamentem? Registrei que trataria deste tema em um outro artigo. Eis aqui.
Trata-se de um assunto que aborda aspectos profundos da nossa humanidade, desde a nossa incapacidade de reconhecer nossas limitações até situações econômicas e de desconhecimento científico. O foco deste texto, entretanto, será na nossa dificuldade de reconhecer e aceitar o inefável.
A cultura de um povo influencia significativamente como as pessoas lidam com o adoecimento e com a finitude. A cultura ocidental, em particular a latina americana, possui um apelo afetivo emocional forte diante das enfermidades. As culturas norte americana e europeia, por outro lado, racionalizam mais. A oriental e a africana simbolizam, gerando ressignificados conforme suas bases de crenças. Não existe errado ou certo na forma com que cada povo lida com a dor do adoecer e morrer. Contudo, existe algo em comum em todas essas culturas. Elas focam no porquê adoecemos. E esse é o ponto nevrálgico do que será trazido aqui.
O pensamento causal, cartesiano, conduz a busca do motivo pelo qual se adoece. Necessário a investigação científica, e que vem proporcionando a descoberta de inúmeros tratamentos, este pensamento é o prevalente e responsável por buscarmos respostas, causas, ao que nos acontece e consequentemente a acreditar que descobrindo essas causas teremos os respectivos tratamentos. A despeito de termos ou não um tratamento validado cientificamente para determinada condição de saúde, esse pensamento, associado a imaturidade humana de aceitar o inefável, nos impele a ter que sempre ofertar tratamentos.
Essa pulsão por sempre tratar merece atenção e cuidado. É essa mesma força que conduz a alguns casos de iatrogenia, tratamentos desnecessários, condutas pseudoheroicas, curandeirismo e criação de modelos assistenciais onerosos. Bom pontuar e deixar claro que sempre há o que fazer, mas nem sempre há o que tratar. Sempre podemos cuidar, zelar e confortar, mas nem sempre podemos consertar. Uso a palavra consertar pois curar é epistemicamente mais ampla. Nem sempre é possível retornar um organismo a um nível de funcionalidade anterior.
Aceitar a impermanência, acolher a incerteza, reconhecer o poder do sagrado são passos importantes em direção a fazermos uma assistência a saúde com mais sabedoria. No Home Care, na atenção domiciliar, onde muitas condições de saúde encaixam-se no escopo do desconhecido a ciência, como as síndromes demenciais e todo o leque das doenças neurodegenerativas, o nosso pensar precisa caminhar em outra direção. Mais importante do que nos perguntarmos o porquê o ser adoeceu é para que ele adoeceu.
Esse olhar abre portas para um mar de oportunidades de novos significados a existência do paciente, da família e dos profissionais de saúde. Pensar no “para que adoecemos” não quer dizer que não vamos tratar o que é tratável, é na realidade nos colocarmos no lugar de aprendiz diante da dor. É buscar aprender com a enfermidade, fazendo do momento um professor. Neste lugar de aprendiz, buscando ouvir nossa voz interior e a Voz Superior, seremos capazes de tomarmos decisões mais sábias. E poderemos respeitar os limites da natureza, da medicina e da nossa humanidade.
E essa mudança começa nos profissionais de saúde, colocando-se empaticamente no lugar do outro e propondo e propondo-se a esta reflexão: “para que adoecemos”. Sendo agentes da saúde que compreendem, aceitam e respeitam o inefável, a finitude, a impermanência, e ampliando a nossa consciência para o que realmente somos, Assistir a Vida torna-se leve e repleta de significado. Esse é mais um dos nossos convites.
 


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